Por Marcio Sales Saraiva, sociólogo, mestre em políticas públicas e doutorando em psicossociologia no Eicos-UFRJ.
Adam J. Chmielewski é professor no Instituto de Filosofia da Universidade de Wrocław, Polônia. Estudou filosofia e ciências sociais nas universidades de Wrocław, Oxford, Nova Iorque e Edimburgo. Seu livreto/ensaio, chamado “Pós-verdade e suas implicações”, saiu em 2022 no Brasil (Tradução: Eduardo Portanova Barros, Curitiba: PUCPRESS, 48 páginas).
Destaquei alguns momentos importantes:
“A descrição do neologismo [pós-verdade] traz, justamente, a perspectiva de que os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que o apelo às emoções e às crenças pessoais.” (p. 7)
“O termo ‘pós-verdade’, cunhado por Steve (Stojan) Tesich, um dramaturgo americano de origem sérvia, referia-se, originalmente, à outra coisa, no entanto. ‘Pósverdade’ surge, em um diagnóstico amargo, com foco, a partir de Tesich, não na desonestidade dos políticos, mas, antes, na indiferença e apatia cívica das pessoas que os elegeram. Seu argumento trata de uma avaliação crítica da opinião pública nos Estados Unidos durante três ‘presidências’ republicanas: Richard Nixon, Ronald Reagan e George Bush. Ele se refere à Síndrome de Watergate, que, como ele afirma, surge após as revelações de que algo errado acontecera nos mais altos cargos do país. A síndrome de fuga da verdade por parte do público fora, posteriormente, ainda mais reforçada pela atitude pública e política em relação ao caso Irã-Contras. Em sua conclusão, Tesich enfatizou que o silêncio, moralmente dúbio, da maioria silenciosa ocorreu não em condições de uma opressão política violenta como um regime do tipo soviético, mas em um país que se apresenta, consistentemente, como um parâmetro de liberdade.” (p. 10)
Olhando para a tradição antiga, medieval e moderna, “é justo concluir que nada abalou a crença na incontestabilidade da verdade mais do que as persistentes tentativas filosóficas de defini-la de uma forma incontestável” (p. 19).
Platão e Maquiavel, para ficar em dois exemplos clássicos, privilegiaram a eficácia da ação política em detrimento de verdades e/ou virtudes. E não somente nos clássicos, mas em diversos filósofos políticos, tais como Arendt, Rawls etc., a verdade tem um papel, no mínimo, ambíguo na esfera política. Sendo assim, para Adam J. Chmielewski, é questionável a ideia de que foram “os pensadores pós-modernos que minaram a importância da verdade na vida política”. Isso “sugere que o papel enfraquecido da verdade na política não pode ser visto apenas como resultado do cinismo maquiavélico, infestando a política contemporânea”. E também é possível demonstrar que “o status da verdade na política era problemático para os filósofos, desde os primórdios da filosofia política, mesmo, ou especialmente, para seus mais fervorosos campeões filosóficos”. Em resumo, é compreensível que “poucos filósofos da política estejam dispostos a apoiar uma estrita observância dos requisitos da verdade na política” (p. 26).
Outro problema na ação política contemporânea é a falácia cognitocrática. Adam J. Chmielewski explica:
“A falácia é uma crença errônea de que o poder político pode ser legitimado apenas pelo conhecimento possuído pelos atores políticos. O erro envolvido é confundir o conhecimento, incluindo o conhecimento da política, com habilidade política ou perspicácia, e presumir que o verdadeiro conhecimento seja uma condição necessária e suficiente para uma ação política bem-sucedida. A falácia é, portanto, um erro categórico óbvio, mas, comumente cometido e que confunde ‘saber que’ com ‘saber como’.
Semelhante a um eco distante da ideia platônica/baconiana de que conhecimento é poder, a falácia deriva de uma crença de que a verdade, como propriedade do conhecimento, seja uma entidade que subsista por si mesma, sendo uma précondição para uma ação política bem-sucedida.
A falácia cognitocrática também ignora o fato de que as declarações políticas não são descritivas por natureza, mas, muitas vezes, têm um propósito performativo: elas não pretendem transmitir uma verdade, mas, na maioria das vezes, transformar as crenças de seus destinatários.” (p. 27)
O que Adam J. Chmielewski argumenta é que a verdade, tal como a entendemos no regime cognitivo das ciências, não tem papel central na esfera política, cujo propósito é performativo, sedutor e de convencimento do outro. Cada regime cognitivo, cada campo social de saber tem sua própria disciplina.
“Todo regime é opressor; assim são os regimes cognitivos. As normas que orientam os processos cognitivos e descritivos cumprem assim uma tarefa disciplinar; significa que eles permitem certas maneiras de ver as coisas e falar sobre elas, enquanto proíbem outras. O regime cognitivo suficiente para propósitos mundanos [como a política] é mais tolerante do que o regime cognitivo na ciência ou engenharia, que estão entre os mais exigentes e opressores. Os regimes dos discursos lógico, matemático, técnico ou gramatical são mais restritivos — isto é, intolerantes à divergência das regras adotadas — do que os regimes dos discursos diários. Vários regimes cognitivos, embora se sobreponham uns aos outros, não formam um sistema disciplinar coerente e, muitas vezes, entram em conflito uns com os outros.” (p. 29)
Contrariando o “populismo alético”, muito usado pela extrema-direita para se dizer portadora de uma suposta “verdade que ninguém te contou”, o construtivismo alético de Adam J. Chmielewski “abre um caminho para a compreensão da política como um regime específico de pensar, falar e agir no qual a verdade desempenha um papel, embora de uma maneira diferente daquele que desempenha na ciência ou em outras áreas da vida humana” (p. 32).
“Em outras palavras, o regime político impõe requisitos específicos às narrativas políticas que, embora baseados, em alguma medida, nos discursos cotidianos, jurídicos, científicos, de engenharia e outros especializados, não podem ser reduzidos a eles. Pode-se dizer que a verdade como um valor supremo na ciência se traduz na engenhosidade, credibilidade e confiabilidade dos atores políticos, e que a eficácia de suas ações depende, antes de mais nada, dessas propriedades.” (p. 32)
A política pede engenhosidade, credibilidade e confiabilidade dos atores políticos, mas não necessariamente “a verdade em sentido forte”, tal como se exige no campo das ciências naturais ou na matemática.
“É por isso que o regime político não pode ser avaliado apenas do ponto de vista das exigências da verdade, como exige o falacioso populismo alético. A política não é uma prática cognitiva, mas ética. Está sujeita a julgamento moral normativo e é avaliada, principalmente, do ponto de vista de categorias distintas da verdade.” (p. 32)
Adam J. Chmielewski fecha seu ensaio dizendo que a razão da crise democrática atual, no mundo liberal ocidental, está em seus cidadãos/eleitores. Estes “exigem demais” dos políticos, como se estes fossem capazes de realizar todos os desejos impossíveis, enquanto estes mesmos cidadãos/eleitores vivem passivamente suas vidas ordinárias.
Por outro lado, Adam J. Chmielewski aponta o problema do “desamparo dos cidadãos” (não deixa claro o que tal significa), supostamente incapazes de articular livremente seus “agenciamentos”. Portanto, o problema da crise democrática liberal não é epistemológico, não é “falta de verdade” ou excesso de “fake news”. O problema é moral, diz o autor.
E, com tudo isso, Adam J. Chmielewski nada diz sobre economia (a captura das instituições políticas pelos interesses imediatos do mercado), desigualdade social, Big Techs, manipulação e distorções cognitivas, monopólio dos sistemas de informação etc. Ainda assim, gostei muito de ler este trabalho e quero conhecer mais textos deste autor.