Diante das várias denúncias e graves acusações contra o Dr. Sílvio Almeida, já demitido pelo Governo Lula, emerge um fenômeno de negação e racionalização por parte de alguns setores da militância de esquerda. Afinal, é “inaceitável” que um homem brilhante, comprometido com as causas mais nobres da democracia, possa ter se comportado de forma incoerente e machista, assediando sexualmente diversas mulheres, conforme as denúncias indicam.
Negar e racionalizar são mecanismos de defesa ativados quando não conseguimos aceitar ou processar uma verdade perturbadora. “Como ele, logo ele, poderia fazer isso?”, “Só pode ser uma conspiração”, “Deve ser um engano”, “É invenção dos racistas”, são algumas das reações típicas.
Para muitos, um ícone político ou intelectual como o Dr. Sílvio Almeida, com reconhecimento internacional, representa um conjunto de significados que estrutura o imaginário social — especialmente o da esquerda brasileira, orgulhosa de tê-lo como um de seus quadros mais brilhantes. Não é fácil ver isso se quebrar.
As pessoas se identificam com esse currículo exemplar, vendo nele um “ideal do Eu” — e essa identificação traz um gozo simbólico. Assim, reconhecer que ele, justamente ele, pode ter cometido graves erros, comuns aos humanos, seria destruir essa imagem idealizada, inflada por projeções libidinais, desestabilizando o próprio senso de identidade daqueles que acreditaram, lutaram e o defenderam.
Por tudo isso, não é surpreendente a negação, a resistência e a perplexidade que levam à criação de teorias conspiratórias que culpam terceiros por “forjarem um complô”. Alguns se recusam a ver a gravidade da situação, que demandava uma resposta contundente e exemplar de um governo progressista, comprometido com os direitos humanos e a luta das mulheres.
É inegavelmente doloroso e traumático assistir a tudo isso. Eu mesmo sou admirador deste grande mestre e me sinto profundamente abalado. No entanto, lamento ainda mais a dor das mulheres que o denunciaram, assim como das que optaram pelo silêncio, merecendo todo nosso respeito. Nem posso imaginar o sofrimento, o desamparo, as pressões, os constrangimentos e o medo que enfrentaram ao pensar em denunciar alguém tão conhecido. E não são poucas as mulheres. A ministra Anielle Franco, talvez a mais conhecida entre elas, também o denunciou, estando em uma posição de poder institucional e simbólico equivalente. Caberá à investigação da Polícia Federal esclarecer os fatos, assegurando o amplo direito de defesa.
O caso abalou a opinião pública pelo imenso respeito conquistado pelo ex-ministro, um dos maiores intelectuais negros do país. No entanto, ele recoloca em pauta debates fundamentais sobre patriarcado, racismo e a perpetuação de práticas machistas, de abuso, assédio e violência sexual. Num momento em que alguns, dentro da própria esquerda, começam a questionar as pautas identitárias, julgando-as distrações que enfraquecem a luta de classes, é preciso fazer uma reflexão crítica. A interseccional idade dessas questões é evidente, e não podemos abrir mão da luta das mulheres, da população negra e da comunidade LGBTI+, sem perder de vista a luta geral das classes subalternas, da Senzala Brasil, contra a Casa-Grande.
A esquerda não tem o monopólio da ética, assim como a direita não o tem. Ninguém está imune a reproduzir os comportamentos que critica no campo social. Não existem seres perfeitos, acima do bem e do mal, exemplos de virtudes divinas. Somos todos seres faltantes, atravessados por estruturas históricas de violência, abuso e opressão. E isso não significa “passar pano” ou justificar o ex-ministro, mas reconhecer que admitir nossa humanidade trágica — bela e imperfeita, sublime e impura — é um passo necessário em direção à maturidade, superando idealizações infantis. Que a justiça seja feita.