A sensação predominante em muitos grupos de ativistas de direitos humanos é de surpresa, quando não de perplexidade. Diante da incerteza, as pessoas começam a construir suas próprias deduções. É esperado que militantes de longa data dos movimentos sociais, frequentemente acostumados a serem retratados pejorativamente pela mídia corporativa, relutem em “abandonar um companheiro” à mercê de cancelamentos. A primeira reação é duvidar das fontes (mídia golpista), questionar as intenções: pacto da branquitude; “ele se opõe à privatização de presídios; ONG estrangeira e assim por diante. Além disso, há algum tempo, diversos movimentos sociais vêm insistindo na importância de “raça” e “gênero” na nomeação de pessoas para cargos importantes. A nomeação de ministros e ministras negras para o STF é o ponto alto dessa reivindicação. Fora a radical disparidade material e simbólica, não há nada que justifique, positivamente, o corte de gênero e raça nos postos de elite. As “decisões pragmáticas” “sem considerar” cor e gênero apenas reforçam as estruturas e valores vigentes. Quando já existem pessoas qualificadas para os mesmos cargos, com a singela diferença de terem nascido sem serem homens brancos, a “urgência” do cálculo político imediato tende a favorecer a estrutura social, simbólica e política dada. A mudança é uma escolha deliberada. Para que ela persista, deve ter apoio na sociedade, que se traduza em votos.
Como negar o tratamento diferenciado dado a ministros dos quais o governo depende, como, por exemplo, Juscelino Filho (Comunicações), indiciado pela Polícia Federal, em 2024, por fraude em licitações e organização criminosa? Ou a falta de alinhamento político do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que defendeu abertamente o Marco Temporal, enquanto o governo e o STF caminhavam na direção oposta? O próprio governo optou por deixar de lado a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, mais um dos inúmeros acenos de boa vontade para com os militares. Esse ponto, inclusive, foi retomado por Silvio Almeida em uma linha de ação oposta à do governo. Não se trata de criar um ranking de transgressões “mais aceitáveis” ou equiparar falta de alinhamento político ao cometimento de crimes. O ponto é: o cálculo difere, seja pela pessoa, pasta ou meios de sustentação política.
Um falso dilema é que a simples presença de homens negros e mulheres negras acarrete obrigações morais maiores do que as dos demais em cargos de comando. Não há argumento meritocrático que explique o branqueamento dos cargos de elite. Esse argumento, por si só, é suficiente para rediscutirmos os processos de seleção para esses cargos. Não significa que os “não brancos” ascendentes tenham que ser “santos” com um grau de exigência maior ou menor do que os demais. Certamente, há mais tristeza nos movimentos sociais em relação às denúncias contra Silvio Almeida do que contra Juscelino Filho. As expectativas eram outras. A decepção também. Essa alta expectativa vale também para Anielle Franco, à frente da Secretaria de Igualdade Racial. É uma situação dilacerante para aqueles que julgam ter sofrido violência e, em outro nível, para aqueles que precisam entender o que está ocorrendo.
Num segundo momento de reflexão, pode-se lembrar que a pessoa em questão já apresentava sinais que apontavam para esse desfecho, nós é que não queríamos aceitar. A nota da Coalizão Negra por Direitos oferece um bom exemplo dessa leitura da situação: “Nos bastidores do movimento negro, porém, já há algum tempo, é visto com reservas por várias lideranças”. Destaca, em particular, “o assassinato de João Alberto Freitas, dentro de um supermercado Carrefour em Porto Alegre, em novembro de 2020” (…) “Enquanto vozes do movimento negro choravam publicamente seu luto, Silvio Almeida aceitou assumir a condução do Comitê de Diversidade do Carrefour”. Isso antes de ser ministro. A nota também cita o relato publicado pela revista Veja de alunas que teriam sofrido assédio sexual em uma faculdade privada de São Paulo.
Infelizmente, os prejulgamentos e tomadas de posição ocorrem de maneira mais ou menos emotiva e direta. Nunca partimos do zero, mas de inclinações já presentes em nossas mentes. Não adianta pedir calma em prol da presunção de inocência e do devido processo legal. O tempo da política, acelerado pelas redes sociais, é o das conclusões “muito evidentes”, que dividem “os bons” dos “maus”. Independentemente do resultado legal daqui a alguns meses ou anos, o impacto dos fatos (verídicos ou não) já é uma realidade no mundo político. Não é com base na produção de provas em um processo legal que decisões políticas são tomadas sobre este caso.
Inexiste fórmula mágica que transforme pessoas de direita ou de esquerda em pessoas moralmente superiores, a priori. São as ações práticas que definirão o que há de sombrio, ou não, na conduta de cada um de nós. A recusa pública de valores machistas, racistas e xenófobos é um bom começo (para direita, centro e esquerda), mas também pode servir como fachada pública para agir de outra forma no privado. É o que muitas empresas fazem em relação ao meio ambiente; como tratam seus empregados e as populações atingidas por suas atividades. Em governos, algo semelhante pode ocorrer, especialmente por sua composição nunca ser monolítica. Existem sempre lideranças e grupos disputando mais recursos, mais poder e visibilidade. Isso é positivo, pois, nessas disputas, os “excessos” e “pecados” dos diferentes lados acabam surgindo, independentemente do governo.
A dor das vítimas é real e não deve ser menosprezada. Nossa inteira solidariedade e compromisso para com elas. Por sua vez, a veracidade dos fatos, premeditados ou não, não muda o cálculo político. O momento é de melhora na economia, eclipse político do Sete de Setembro bolsonarista e esvaziamento do Congresso devido às eleições municipais. A crise é uma antecipação da reforma ministerial prevista para depois das eleições, que pode “ajudar” a reposicionar o governo frente à sua base parlamentar, sem falar na sucessão das presidências no Congresso. O antigo ministro não tinha muito a oferecer nesse campo, nem a pasta é alvo de grandes cobiças. Silvio Almeida mantinha certa independência de partidos e de alinhamentos automáticos, típico do intelectual que valoriza mais a biografia e a ética da convicção do que a ética da responsabilidade política.
Passando aos ministérios/secretarias, há um paradoxo nas políticas públicas de direitos humanos. Por se tratar de uma agenda transversal, que passa por políticas públicas de diversos ministérios, pode-se fazer muito por essa pauta sem, necessariamente, avançar nas políticas específicas. O governo Lula vem melhorando as condições sociais da população e se mostra mais “civilizado” do que o anterior (para dizer o mínimo) em suas posições sobre a efetividade de direitos. Os ministérios mais específicos (Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos) trabalham com orçamentos menores, tendem a fazer alianças entre si e a “sensibilizar” os demais ministérios para suas pautas (matricialidade). Desenvolvem políticas públicas mais específicas para públicos importantes. Além desse cenário geral, há a péssima imagem deixada pela antecessora. Ela soube usar o cargo para ganhar visibilidade, muitas vezes propagando fake news e políticas absurdas. Ficou a impressão de que qualquer um poderia ser ministro dos Direitos Humanos e dizer qualquer banalidade (meninas de rosa, meninos de azul), dependendo do governo que assumisse.
Os três ministérios mais diretamente ligados aos direitos humanos seguem como atores secundários na Esplanada dos Ministérios. Quando ganham grande repercussão, não é pelo que fazem de melhor. Um fato lamentável. Direitos humanos permanecem um desafio ao “reformismo fraco” do governo Lula 3. A agenda de direitos humanos é composta por compromissos civilizatórios, pela proteção de indivíduos e pela efetividade de direitos. Representa o pacto por uma sociedade melhor, na qual cada pessoa possa expandir suas potencialidades, sem prejuízo à diversidade e aos grupos minoritários. Há muito a ser feito, e podemos começar pelas escolhas de quem confiar e pelas razões para isso. Que a mudança traga novas perspectivas!
Ronald Vizzoni Garcia
Sociólogo (UFRJ). Doutor em Ciência Política (IUPERJ/UCAM). Coordenador do curso de extensão: Iniciação à Gestão Municipal de Políticas Públicas em Direitos Humanos.
(publicado em A terra é Redonda, 09/09/2024)